sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A mão da limpeza






Moacir: No seu disco "Raça Humana", você tem uma música que gerou polêmica entre brancos e negros chamada "Mão da Limpeza", seria por que essa música toca nesse preconceito dito não existente no Brasil e que as pessoas não assumem?


Gil: Acho que toca diretamente na questão. Acho que esta política de impingir ao negro uma inferioridade para autenticar e facilitar com isso a dominação sobre o negro, que foi basicamente o processo que se encontrou na escravidão na colonização brasileira. 

Ao longo da história das relações negros e brancos no Brasil, o branco imputava ao negro uma desqualificação humana. Desqualificava o negro numa instância secundária, quase como não humana, para poder tratá-lo como animal, para poder exercer, para poder escravizar, para poder usar essa força de trabalho, etc. Tudo isso que a gente sabe. 

A política do branco era essa: considerar o negro como um ser não humano, inferior, etc. Entre milhares de estratagemas para isto, um deles era essa coisa, esse ditado tão popular: "negro quando não suja na entrada, suja na saída", que é uma forma de dizer: negro é igual a um animal qualquer, igual a um gato que está sempre sujando. Ou seja, era uma forma de dizer que o negro não pensava, que o negro não tinha cabeça e que o negro era apenas corpo. Não tinha alma. Eram formas de negação absoluta do nível humano ao negro. 

Então eu tentei com essa música devolver esta maldição, dizer: Não é assim, fazer o feitiço virar contra o feiticeiro, de uma forma absolutamente indiscutível porque uma leitura um pouco mais profunda da música o que demonstra ?
Que toda coisa que está aí, este mundo, esta civilização Ocidental extremamente suja poluída, a degradação do meio ambiente (risos), tem tudo a ver com o branco.

Na civilização Ocidental, o negro não tem nenhuma participação. Não foi ele que industrializou o mundo, não é ele que faz Itaipu, Carajás, não é ele que fez usinas atômicas. A força do trabalho sempre foi dele. No fundo ele sempre "limpou".

Quem são as lavadeiras, as cozinheiras, o mundo escravo que sempre serviu aos senhores? No fundo o que a música quer dizer é isso. Quem foi que sempre limpou as latrinas das casas grandes dos senhores? (risos). Sempre foram os negros. 

Então como é que eles é que são os sujos? (risos). Eu sei que é uma música complexa, polêmica, os negros mais politizados tiveram uma reação negativa em relação à ela, porque argumentavam que ela levanta o problema, mas não propõe soluções, mas e daí?  Levantar uma questão em determinados casos já é o suficiente.

Moacir: Pode até acabar o ditado?

Gil: Sem dúvida. Eu noto quando eu canto, o entusiasmo das pessoas e principalmente dos brancos no sentido de se entenderem irmanados, um pouco mais racialmente, a partir de um alerta como esse que a música faz. É de novo aquela questão: não me sinto nada culpado ou arrependido de ter feito uma coisa dessa. Pelo contrário, me sinto gratificado.



Entrevista inédita que Gilberto Gil me concedeu em 1985.A integra estará em meu livro.

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